No mês de agosto do ano 2013, tomei posse como juíza de uma Vara de Execução Penal e, uma das minhas atribuições, era inspecionar o Conjunto Penal da cidade de Lauro de Freitas, Estado da Bahia. Naquela época, o estabelecimento prisional possuía, aproximadamente, 500 (quinhentos) custodiados, do sexo masculino, em regime semiaberto.
Observava as instalações na Unidade de Custódia em sua regularidade e funcionalidade: este era o “olha inicial”, apenas isso, nada mais. É bem verdade que, em sentimento, não gostava de estar ali. Inquietava-me o “estar preso”, todavia precisava fazê-lo, afinal, era meu dever funcional.
Contudo, já no ano de 2016 iniciei estudos no campo da fotografia e, a partir desse momento, as inspeções passaram a ter um novo significado. Comecei a fotografar as celas e, com tal vivência, percebi que tal representação poderia ser uma ferramenta para acessar outras camadas de percepção daquele lugar, do espaço-tempo em que viviam e os sentimentos que permeavam ali e naquelas pessoas privadas de sua liberdade.
Refletia sobre aquela experiência, entendendo haver inúmeras dimensões, potencialmente objetos de pesquisa daquele espaço. Percebi a existência de sublimidade e simplicidade, com possibilidade de dialogar, de forma poética, sobre um universo comum para mim, todavia, ao mesmo tempo, pouco conhecido e estigmatizado pela sociedade contemporânea.
Iniciaram, assim, as primeiras séries fotográficas. Interessava-me investigar a percepção de valores e sentimentos não imaginados. Instrumentos de ligação entre passado, presente e futuro, entre o “estar dentro e o estar fora, o acerto e o erro, o estar preso e a liberdade”.
Desejava apresentar o sistema prisional, bem como os apenados, de uma outra forma, transmutando a visão e a perspectiva que as pessoas têm de quem está preso, segregado de parte da sociedade e, às vezes, tão próximo de seus familiares que nos faz questionar o nosso próprio comportamento no âmbito familiar, afinal estamos “livres”, fisicamente, enquanto eles não.
Assim, experiências cotidianas, antes ordinárias e pouco significativas, transformaram-se em importância e sentido, em frequência e satisfação. A ressignificação do espaço e de seus ocupantes permitiu-me, ainda, uma enorme reflexão pessoal, inimaginável no início da trajetória, até então descrita.
Em minha pesquisa buscava, inicialmente, retratar cantos e lugares, explorar a relação daqueles homens com o seu ambiente, entender essa relação de espaço-tempo, captar vestígios e aspectos significativos do ser humano. E, para além da função visual da fotografia, juntar poesia. E, para além da captura da imagem, encontrar ligação com um universo de referências.
O primeiro ensaio fotográfico (MORADA) apresentava as celas do Conjunto Penal da Cidade de Lauro de Freitas, denotando-as na acepção de um lugar-espaço permanente ou temporário.
Em seguida, após visita a outro estabelecimento prisional, este situado na cidade de Salvador, Capital da Bahia, novo ensaio surgiu. Desta feita, decidi falar sobre este espaço arquitetônico, ora desumanizado e abandonado pelo Estado: lugar de desacolhimento, de paredes mofadas, rachadas, de vasos quebrados, demonstrando o descaso do Poder Público e a explícita rejeição social daqueles que são esquecidos por todos nós. (UM CANTO ESQUECIDO).
Com inquietações, muitas perguntas e algumas respostas, seguindo essa busca, a fotografia me levou para um espaço e tempo além do meu trabalho de juíza, tentando entender aquelas pessoas e aquele lugar. Fotografei desenhos que os apenados faziam nas paredes do Conjunto Penal da Cidade de Lauro de Freitas e, após algumas conversas com eles, entendi que era uma forma de se expressar, uma forma de desabafo de quem não possuía liberdade para falar o que se queria. Surge o terceiro ensaio (ESCRITO NAS PAREDES – DESABAFO).
Percorrendo o caminho escolhido, em uma das muitas idas ao Conjunto Penal, conversando com a servidora Liana Rezende, professora do referido estabelecimento, pedi que se realizasse uma oficina com os apenados, onde estes escrevessem, ou desenhassem, o que significava, para eles, estar preso.
Passei um bom tempo lendo as cartas e olhando os desenhos. As imagens das artes gráficas eram extraordinárias. Vi que, junto com as fotografias, podiam nos oferecer inúmeros elementos para prestarmos atenção a essas pessoas privadas de liberdade, como seres humanos que, apesar de seus erros, têm sentimentos e emoções.
Os desenhos e textos surgidos dessa atividade deram início ao presente trabalho, ainda em sua fase inicial de projeto, objetivando a tentativa de captar, com fotografias, as causas desses sentimentos e emoções descritas, das experiências vividas, os erros e acertos, buscando correlacionar com os desenhos produzidos por eles.
A saudade da família, a vontade de ir para casa com a possibilidade de nova vida, o reconhecimento dos equívocos, bem como as demonstrações de fé em Deus, foram respostas fornecidas, captadas por este meu “atual olhar”, ainda em transformação e amadurecimento.
Os desenhos rememoram-se em imagens fotográficas do ambiente e daquelas pessoas. Percebi a representatividade de valores morais e sentimentos universais que assistem ao ser humano de todos os tempos, de todas as épocas e em qualquer situação: seja quando gozando de liberdade, ou, mais ainda, quando consciente de sua privação.
Um caminho árduo a se permear, identificando os sentimentos dentro dos limites do cárcere e, através da fotografia, representar esses desejos, traumas, cicatrizes, complexos, lembranças, afetos e desafetos, amores e desamores. Sentimentos que, muitas vezes, não podem ser externados em razão do encarceramento, o que lhes causa fragilidade, insegurança e vulnerabilidade.
Talvez este ensaio fotográfico sirva como oportunidade de favorecer a catarse, enquanto forma de libertar aquilo que se está reprimido dentro do peito, daquele que convive com a prisão física, porém está disposto a dar asas à imaginação, à gratidão de se estar vivo, buscando a completude daquilo que se perdeu ou, quem sabe, daquilo que nunca se teve: demonstração dos sentimentos, em representatividade de sua voz interior.